terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Quando virtudes podem virar vícios

Ricardo Gondim

Genialidade e loucura caminham próximas. De médico, juiz, comentarista de futebol, teólogo e doido tudo mundo tem um pouco. Não faltam histórias de pessoas inteligentes com um parafuso frouxo. Se gênios vivem entre a excepcionalidade e o lunatismo, todos, com atos e atitudes, perigam desequilibrar, tingindo a vida com a cor da maldade.
Bibliófilo assumido, gosto de sebos. Certa vez, caminhando pelos corredores empoeirados de um alfarrábio, notei uma enorme quantidade de livros empilhados; todos da mesma pessoa. O gerente relatou  que aqueles livros pertenceram a um burocrata, desses incansáveis batedores de ponto, que não tira férias. Chegou um novo chefe do departamento e diante da necessidade de re-organizar o setor, o impoluto empregado se viu obrigado a sair de férias – depois de 17 anos. Cumpridos os trinta dias de afastamento, o homem voltou para uma nova sala;  móveis, armários, cadeiras, tudo estava “fora do lugar”.
Revoltado com a nova disposição, o rígido e obediente funcionário não conseguiu se adequar. No sofá, onde gostava de ler, colocou o cano da pistola na boca e puxou o gatilho. O minucioso zelo pelo trabalho, a obsessiva disciplina, a inconformidade aos novos ventos, aprofundaram sua neurose. Pareceu-lhe melhor morrer a ter que amargar as transformações que o tempo impõe. Entre os livros empilhados, comprei um para nunca esquecer aquela história.
Sim, virtudes podem adoecer. Inteligência não previne sociopatia. Conservadorismo não significa saúde mental.
Sinceros correm o risco de se tornarem inconvenientes. É desagradável conviver com a transparência dos que têm o dever de se mostrarem cândidos. Calar certas verdades que vimos nos outros muitas vezes não é mentir, apenas respeitar. Dizer o que “dá na telha”  nem sempre expressa franqueza. Muitas vezes “confrontação” não passa de desejo de vingança. Sinceridade deve vir precedida pela graça.
Toda virtude pode descambar em vício. Os corajosos devem cuidar para não permitir que coragem se transforme em obstinação – e teimosos correm o risco de atropelar pessoas e sentimentos. Intrepidez sem equilíbrio pode transformar-se em obsessão.  Zelo sem moderação pode degenerar em ativismo. Diligentes, absorvidos no dever, podem sofrer da síndrome da “trabalholatria”. Justos mal sabem que messianismo lhes espreita em cada esquina.  Só se aproveita a integridade quando ela não induz à auto-veneração. Extrapolar na busca da perfeição desencadeia preciosismo, que leva à meticulosidade asfixiante. Gente exageradamente criteriosa se considera palmatória do mundo, xeretando o que não deve.
Fé pode degringolar no sério desvio da credulidade, deixando a pessoa sem bom senso. Provérbios afirma: “O inexperiente acredita em qualquer coisa, mas o homem prudente vê bem onde pisa” (14.15). No extremo oposto, fé pode gerar presunção; pessoas se imaginam com tanta certeza espiritual que alucinam, acreditando poderem se antecipar ao que Deus faria.
Andar ao lado de pessoas obcecadas por exigências sobre-humanas pode adoecer. Melhor caminhar com quem vive com leveza. Vale conviver com quem sabe relaxar, rir de si  mesmo e celebrar a vida despretensiosamente.

Soli Deo Gloria

Fonte: http://www.ricardogondim.com.br/meditacoes/vicios-e-virtudes/

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